segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Procuro-te


Acordei com vontade de ler poesia e resolvi conceder-me isso mesmo: uma pausa, uma caneca de chá e a companhia de um poeta.
Dos poetas, não sei quando escrevem mas acho que é quando se sentem sufocar. Digo-o porque é quando me sinto assim que me apetece lê-los mas isso é, às tantas, uma tolice minha. Que sei eu deles, que temos em comum senão a dor que eles escrevem e eu leio?


Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

1 comentário:

Alexandra disse...

Têm muita coisa em comum, muito além da dor: a esperança. O olhar e a sensibilidade. O amor.