sábado, 9 de janeiro de 2010

O maior espectáculo do mundo


Chegaram em meados de Dezembro e instalaram-se no terreiro em frente ao pavilhão da antiga fábrica de lanifícios, aquele que serve agora para exposições temporárias e para a feira das comunidades migrantes. No mesmo terreiro aonde, aos domingos de manhã, um grupo de donos dedicados levam os respectivos cachorros às aulas de andar de trela curta, sentar, levantar e rebolar, dar a pata e ziguezaguear entre pinos. Enfim, cada um sabe de que carga semanal se quer livrar... E que fazer se burro velho não aprende línguas, mas os cães quem sabe, talvez com eles seja diferente?
Não sei a que horas chegaram mas quando dei por eles, noite alta, estavam apagadas todas as luzes, tudo era sombra sob os eucalitpos. Acesos, restavam apenas os neons e lia-se WA TER D AS. O mistério dissolveu-se na manhã seguinte quando passei, bem cedo, e pude ler, entre a neblina vinda do rio, CIRCO WALTER DIAS, num tipo de letra que, percebi, estava ao gosto de quem sonha com a Disney em technicolor.
Lembro-me que rosnei qualquer impropério entre dentes, chegam-me a balbúrdia das feiras no verão e as frenéticas campanhas de Natal que começam em Outubro, e desejei que se fossem depressa. Não foram. Mas também não vi vivalma naquele terreiro, gente na bilheteira, crianças curiosas junto ao camião das feras, nem feras detrás das grades. Zero durante três longas semanas.
Comecei a passar mais devagar, a procurar as trapezistas, o mágico, a domadora de caniches, o palhaço pobre... Nunca vi uma alma sequer. Arrependi-me de ter querido vê-los pelas costas e dei comigo a pensar em cada um deles. E lembrei-me dos artistas do Circo Fúria, que vi quando tinha 8 anos, e que deve ter sido o circo mais pobre à face da Terra. A única atracção animal era um cavalo velho negro, o Fúria, que após dar umas voltas à arena minúscula, simulava bravura com uns coices para depois se deixar domar por um homem de chicote longo, cartola, jaqueta vermelha, botas altas e calças brancas, justas, muito encardidas. Depois do Fúria vieram as trapezistas, duas mulheres jovens, de cabeleiras loiras, muito pintadas, muito iguais, de capa de veludo azul eléctrico. Pareceram-me em bem melhor estado que o cavalo mas quando tiraram as capas vi que as collants tinham buracos e que as sandálias altíssimas, de plataforma dourada, estavam cheias de lama. Subiram para o céu da tenda, penduraram-se pelos pés e balançaram-se num trapézio sem rede ao som de um tamborete nervoso. A partir daí e durante muito tempo o circo pareceu-me muito difícil e até triste.
Anteontem, quando passei junto ao terreiro, a tenda grande já estava no chão, a rulote da bilheteira já não ostentava os neons e o cercado dos animais, aqueles que não cheguei a saber o que eram, sequer, estava desmontado e empilhado. Mas ninguém por ali. Achei quase natural, era hora de almoço.
À noite, no regresso a casa, tinham-me devolvido o terreiro mais os eucaliptos, para debaixo dos quais voltará a escola de andar de trela curta, sentar, deitar, rebolar e dar a pata à voz de comando já este domingo.
Foi então que tive, como nunca, saudades dos palhaços. Livres, de terra em terra, sem escola daquela que funciona sob os eucaliptos aos domingos de manhã.
Não é o circo que é triste.

5 comentários:

Alexandra disse...

Também passámos, vimos e comentámos. Mas chegamos a descobrir, ao fundo, por detrás das grades, um lama castanho escuro.

Mutante disse...

Mais lama? Oh, não! ;o)

Alexandra disse...

No mínimo, um. É a vida.

Anónimo disse...

Que texto extraordinário... muito, muito bonito... Um bem-haja à autora de tamanha sensível profundidade.

Mutante disse...

Muito obrigada.